“Blunderbuss", a melódica faixa que batiza o recém-lançado primeiro disco solo de Jack White, é o equivalente em inglês ao velho bacamarte, arma de fogo de grande calibre de uso comum no século XVI. Também é um termo coloquial para alguém desajeitado, tolo, em quem é fácil passar a perna. Na sala da suíte lúgubre do hotel New Yorker, localizado ao lado de um dos terminais ferroviários mais movimentados da cidade, a metade masculina dos White Stripes ri ao pensar nas muitas possibilidades de tradução da palavra de origem holandesa que desenterrou.
— No início, ela me veio como uma solução para representar a relação amorosa retratada especificamente naquela música — conta. — Depois vi que ela refletia a coleção de músicas novas que estava compondo. Mas ela também é uma metáfora para minha guitarra. Há tantos solos neste disco! E ela tem, aqui, esse som de britadeira quebrando muros, um tchaq-tchaq-tchaq constante que já faço há algum tempo, mas agora ainda mais intensificado, com duas guitarras, uma sobre a outra, quebrando tudo.
Quebradeira que também é resultado de sua separação da modelo e cantora Karen Elson, com quem tem dois filhos, e da decretação do fim da banda que o projetou internacionalmente, formada há 15 anos com outra ex-mulher, Meg White. Cabelos negros jogados para os lados, os olhos, igualmente negros, bem abertos, White olha para crias novas como "Missing pieces" (dos versos "Eu pensei que você havia deixado um recado para mim/ Mas era apenas a etiqueta do travesseiro") e as considera as músicas mais pungentes de sua carreira:
— Este é um disco de canções românticas, algumas mais contemplativas, outras com um som mais áspero, mas todas inevitavelmente românticas.
Ainda assim há espaço para o comentário social, presente desde o primeiro disco dos White Stripes ("The big three killed my baby"). O vídeo de "Sixteen saltines", a segunda faixa de "Blunderbuss", apresenta imagens de uma América decadente e, com a exceção do próprio White, perseguido com requintes de crueldade, povoada exclusivamente por crianças. A infantilização erótica e imbecilizante da nação é escancarada em cenas inspiradas no trabalho de Larry Clark e Harmony Korine, responsáveis pelo niilismo adolescente do filme "Kids".
— Minha vontade era falar do que acontece nas esquinas da América. Na cabeça dos americanos, especialmente antes do 11 de Setembro, éramos intocáveis, o sonho não viraria pesadelo jamais. Tolice. É tempo de relembrá-los de que a qualquer momento tudo pode ruir. Tudo aqui é muito frágil — diz.
‘Semente’ veio com Wanda Jackson
O vídeo foi filmado em Nashville, a Meca do country e endereço de Jack White há seis anos. Lá ele criou a Third Man Records, quartel-general de suas experiências musicais, já comparada a um mix da Factory de Andy Warhol com a batcaverna. Localizada em uma porção industrial da cidade do Tennesse, de seu forno já saíram 45 discos, entre LPs e singles, todos prensados em vinil. Enquanto White conversava com O GLOBO, seus assistentes dirigiam o caminhão-loja da gravadora pelas ruas do East Village, facilmente localizável pela cor amarelo-cheguei e o mote "sua vitrola não morreu".
— Ouvir um disco em vinil é como ir ao cinema. É ver movimento. É a fogueira da música. Para se ter romance, você precisa de mecânica, de movimento. Eu posso compor agora sobre uma velha colheitadeira, mas jamais conseguiria fazer uma música sobre um iPod ou um Xbox — filosofa.
"Blunderbuss" nasceu da produção de "The party ain’t over", o retorno da rainha do rock americano, Wanda Jackson, às suas raízes depois de décadas dedicadas ao gospel. A última vez em que Jack White se apresentou em Nova York, foi ao lado de uma banda de dez músicos, como produtor e guitarrista da diva de 74 anos.
— Foi a primeira vez que comandei uma banda daquele tamanho. Não eram quatro caras como no Raconteurs. Não éramos eu e a Meg. Foi algo completamente diferente. Foi dali que surgiu a semente de "Blunderbuss" e veja o que aconteceu: virei um band leader de duas bandas diferentes, fiquei caro pra dedéu!" — lembra, antes de soltar uma quase gargalhada.
As duas bandas a que White se refere são as formações exclusivamente masculina e feminina com que vem se apresentando na pré-turnê de "Blunderbuss", uma reunião de cobras de ambos os gêneros da rica cena de Nashville.
— Um palco só de marmanjos e outro quase que exclusivo de mulheres mexe com a cabeça de quem vê o show. É uma pegadinha? É uma brincadeira? Ou é uma maneira profunda de se tratar dos dois lados da Humanidade de forma igualitária? Queria ao mesmo tempo provocar o público e criar um novo arcabouço de possibilidades. Não queria estagnação na turnê. Cara, a coisa mais fácil do mundo pra mim hoje é tocar toda noite com músicos as mesmas faixas do mesmo jeito. Mas isso é muito fácil e me assusta pacas. Preciso do desconhecido, sempre", diz.
Velhos favoritos, como "Seven Nation Armies" e "Ball and biscuit" entram no setlist , e os fãs brasileiros, diz White, estão na mira de uma turnê internacional.
— Conto os dias para voltar ao Brasil. O show em Manaus foi sensacional. Eu me casei de manhã e toquei de noite, em plena Amazônia. Isso não acontece sempre na vida de uma pessoa, né? O problema é que, com duas bandas, fica caro pra burro. Será que o governo não daria um desconto pra gente já que são duas bandas? Sei lá, um abatimento fiscal qualquer... Será que O GLOBO não poderia começar esta campanha para a gente poder tocar no Rio? — pergunta, a cara mais séria do lado de lá do Mississippi.
Sem chance de ‘revival’
White, que negou rumores de ter fechado com a Disney o comando da trilha sonora do filme "O Cavaleiro Solitário" ("eles se precipitaram, ainda não há nada certo", diz), também jogou uma pá de cal na possibilidade de retorno dos White Stripes, por mais romântica que a ideia pareça aos fãs da banda-símbolo do revival do garage rock dos anos 1990.
— Não vai acontecer. Aquele foi um tempo maravilhoso, foi o projeto mais intenso do qual já fiz parte. Era tão difícil, e ao mesmo tempo, um desafio delicioso, fazer com que o público prestasse atenção naquelas duas pessoas sozinhas no palco. Mas aquilo eu já fiz. Não há a menor chance de os White Stripes voltarem. Mas vou dizer a você que é extremamente romântico pensar que tivemos nosso tempo e que ele foi bom pacas.
O Globo
http://www.paraiba.com.br/2012/04/30/83834-jack-white-fala-de-seu-primeiro-disco-solo-blunderbuss--e-avisa-quer-vir-ao-brasil